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Do site jurídico Jota: artigo de Marcelo Pacheco Machado (professor da Universidade de Vitória), destrincha o novo Código de Processo Civil
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Novo CPC: Que coisa julgada é essa?
1 . Coisa julgada: limites objetivos
O debate a respeito da possibilidade de a coisa julgada se estender aos motivos da decisão não é novo. Conforme Barbosa Moreira, “até o segundo quartel do século XIX, era extremamente confusa a posição da doutrina sobre a força dos motivos em que se baseia a decisão do juiz” [1].
Savigny, de certo modo, desenvolveu teoria vitoriosa, defendendo que os motivos subjetivos da sentença (os elementos ou partes constitutivas das relações jurídicas cuja afirmação ou negação põe os fundamentos do decisium) deveriam ser objeto de imutabilização pela coisa julgada, e não apenas o objeto principal [2]. No entanto, a legislação posterior, nos principais ordenamentos jurídicos europeus (Alemanha, Itália, Áustria e França), acabou sendo fixada em sentido contrário [3].
No Brasil foi acolhida a tese de Savigny por muitos anos, mesmo depois de abandonada nos principais sistemas europeus. O primeiro código de processo civil nacional, de 1939, determinava no art. 287 que: “A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões decididas. Parágrafo único.
Considerar-se-ão decididas todas as questões que constituam premissa necessária da conclusão”.
O mais curioso é que os problemas que surgiam com esse debate, os argumentos pró e contra, formados a partir da década de 1940, são praticamente os mesmos que temos hoje diante do NovoCPC (cf. item infra).
Os que defendem a coisa julgada sobre questões prejudiciais estão preocupados com a utilidade e com o rendimento do processo, quanto maior a parte do conflito que puder ser objeto desta imutabilização, maior será o atendimento ao escopo social do processo.
Estendendo a imutabilidade aos motivos da sentença, temos a pacificação do conflito com maior amplitude, evitando o surgimento de novos processos (eficácia negativa da coisa julgada) e simplificando o julgamento de mérito de outros (eficácia positiva da coisa julgada) [4].
Os que defendem a limitação da coisa julgada ao objeto principal do processo, diferentemente, focam na previsibilidade e segurança jurídica [5].
Do ponto de vista da técnica processual, ambas as soluções se apresentam viáveis: têm pontos positivos e pontos negativos. É, portanto, mera questão de política legislativa seguir um ou outro caminho.
2 – A solução do CPC/73
Depois de identificados os debates, e especialmente pela influência da escola italiana, o Código de Processo Civil de 1973 foi de certo modo conciliador ao solucionar a questão dos limites objetivos da coisa julgada.
Tentando atender a ambos os escopos já proclamados das distintas teorias (economia e pacificação, de um lado, e segurança e previsibilidade, de outro) buscou solução inteligente e muito bem sucedida.
Inteligente, porque garantiu a segurança jurídica ao limitar a coisa julgada ao dispositivo da sentença, ao mesmo tempo que autorizou a ampliação dos limites objetivos da coisa julgada, permitindo que as partes, de acordo com sua vontade, transformassem as questões prejudiciais que entenderem pertinentes em tema principal do processo, pela via da ação declaratória incidental.
Bem sucedida, pois a solução de 1973 conseguiu aquele que deveria ser o maior (fundamental) objetivo de toda técnica processual, a certeza (reduziu os debates do processo pelo processo).
Não negamos que a coisa julgada material sobre questões prejudiciais, independentemente de ação declaratória incidental, pode evitar o retrabalho. Decidir novamente – como questão principal ou nova prejudicial – aquilo que já foi decido é contrário à economia, contraproducente.
No entanto, a questão prejudicial, mesmo sem coisa julgada, gera relevante efeito persuasório ao juiz subsequente, sem o efeito colateral de justificar debates quanto à propensão daquele ato em se submeter à coisa julgada. Ou, conforme defendia Barbosa Moreira, sem o risco de as partes subestimarem a relevância de determinada matéria, surpreendendo-se ao fim do processo quando esta, decidida incidentalmente, torna-se imutável. Daí o porquê de consideramos muito boa a solução do Código de 1973.
3 – E agora, como estaremos com o NovoCPC?
Depois de toda a disputa, quem vem desde o século XIX, até sua pacificação, com grande eficiência e qualidade pelo texto do CPC de 1973, o novo Código de Processo Civil joga nas mãos de nós, processualistas ou não, novamente todo este complexo debate.
É bem verdade que aquele que começa a ler o Código tem a impressão oposta. Parece malandrear o Código no caput do art. 500 ao dizer que “a decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida”.
Lindo, excelente, mantivemos a inteligência do Código de 1973, não se mexe em time que está ganhando, especialmente depois de uma vitória dessas, de goleada.
E tem mais.
O artigo subsequente apenas confirma esta ideia! Parece mesmo dizer que nada mudou: “Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença”.
Ledo engano. O §1º do art. 500 já nos indicava o contrário: “O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentalmente no processo, se: I – dessa resolução depender o julgamento do mérito; II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal”.
Depois o § 2º ainda complementa este regime especial: “A hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial”.
Sim. Voltamos a ter coisa julgada sobre questões prejudiciais e, por consequência, todos aqueles problemas hermenêuticos em sabermos: (1º) o que é uma questão prejudicial; (2º) em quais casos tais questões prejudiciais fazem e não fazem coisa julgada.
4 – Duas coisas julgadas diferentes: coisa julgada comum e coisa julgada excepcional
O Novo Código de Processo Civil parece mesmo ter dois regimes distintos e autônomos de coisa julgada. Para fins didáticos, e seguindo a posição verbalmente já manifestada por Fredie Didier, gostaria de adotar a seguinte terminologia (a) (regime de) coisa julgada comum; (b) (regime de) coisa julgada excepcional.
A regra geral, aplicável a todos os casos, não muda. O objeto litigioso do processo, definido pelo pedido e identificado pela causa de pedir, deverá sofrer o seu correspondente reflexo na sentença (correlação ou congruência), tornando-se “questão principal expressamente decidida”.
A peculiaridade do NovoCPC reside apenas no fato de que este objeto pode ser ampliado por demandas informais (novo modo de ser da reconvenção), formuladas em contestação pelo próprio réu, além dos casos de intervenção de terceiros (NovoCPC, art. 340).
Mudou a forma, mas o conteúdo é exatamente o mesmo: somente pela demanda inicial e pelas demandas ulteriores (reconvenção, denunciação da lide, etc.) o objeto litigioso do processo deve ser delimitado e, pela regra da correlação, apenas esse conteúdo será decidido como questão principal na sentença.
A matéria objeto de demanda expressa – pela regra geral do código – deverá ser refletida na sentença como “questão principal”, passando a sofrer a imutabilização. Temos aí delimitadas as características daquilo que chamamos de coisa julgada comum, a qual tem este adjetivo por configurar regime aplicável a todos os processos de conhecimento, funcionando em todos os casos.
Ocorre que, além disso, em certas condições especiais, a coisa julgada pode excepcionalmente extrapolar os limites do tema principal decidido na sentença, para imutabilizar também as questões prejudiciais.
Esta possibilidade é excepcional. Não basta que existam ou tenham sido decididas questões prejudiciais na sentença, como premissa lógica pra a conclusão e julgamento dos pedidos. É necessário que outros requisitos estejam devidamente preenchidos.
Vejamo-los.
5 – O noviço regime excepcional de coisa julgada
Para se tornar imutável, a questão prejudicial precisa ser decidida (a) após contraditório efetivo; (b) por juiz absolutamente competente para decidi-la, caso esta tivesse sido veiculada como questão principal; (c) em processo com cognição exauriente.
Inicialmente, resta esclarecer que a lei parece tratar de 4 requisitos distintos para este regime excepcional de coisa julgada (três incisos do art. 500, § 1º e o § 2º), mas na verdade há apenas 3. Isto porque o inciso I do § 1º apenas define (tenta definir) o que é questão prejudicial, estabelecendo sua necessária relação de antecedente lógico ao julgamento do mérito. Se não for assim, não é questão prejudicial e, portanto, estaria fora do regime da coisa julgada [6].
Assim, tratemos do primeiro requisito. Sabemos que no processo civil o contraditório é uma garantia meramente potencial. A Constituição não exige que todos os processos contenham efetiva participação das partes, em alegar, provar e agir de modo a ter efetivas condições de influenciar o julgamento da causa.
Basta, apenas, que lhes seja concedida oportunidade de participação. Daí porque o contraditório é na verdade uma garantia meramente potencial. Por isso, para que haja a coisa julgada comum, não é necessário que de fato o contraditório tenha sido exercido. Esta vai tranquilamente se formar também nos casos de julgamento com revelia, ausência de impugnação específica, baixa participação nas provas, etc.
Diferentemente ocorre com a coisa julgada excepcional, a qual, exatamente em função da sua excepcionalidade, não basta o contraditório potencial. É preciso que todos os participantes do processo tenham – não apenas oportunidade – mas efetiva atuação no contraditório, apresentando argumentos e, quando pertinente, produzido provas capazes de influenciar a atividade cognitiva do juiz.
O segundo requisito diz respeito à competência. Para sua análise, temos que pensar que a questão prejudicial – tal como definida pela lei – deve ter aptidão de, ela própria, ser objeto principal de um outro processo, autônomo.
Nesse caso, exige-se que as partes façam juízo de abstração, para identificarem se aquele juízo que decidiu a questão prejudicial teria competência absoluta, também, para julgar a hipotética demanda autônoma que teria como objeto principal a questão ora decidida incidentalmente. Somente na resposta positiva poderemos falar na produção da coisa julgada [7].
Por fim, o terceiro requisito diz respeito à ausência de limitações cognitivas relativamente ao procedimento.
O processo civil conta com várias técnicas de cognição sumária, as quais em muitos casos permitem julgamento de mérito, sem, contudo, autorizarem o juiz a ser valer de todos os mecanismos necessários para a investigação da realidade e apuração da veracidade das alegações das partes.
Para que a coisa julgada possa se estabelecer em relação à questão prejudicial é necessário evidenciar se aquele especifico procedimento utilizado tem mecanismos suficientes para a investigação profunda da relação conflituosa.
De fato, não se trata da impossibilidade de a coisa julgada existir genericamente sobre questão prejudicial em procedimentos com restrições probatórias, como o mandado de segurança ou mesmo nos juizados especiais.
Isto porque, para aquelas demandas em que o julgamento de questão prejudicial não dependeria de prova pericial ou mesmo de prova testemunhal, a investigação no mandado de segurança ou mesmo no juizado especial pode ser a mais profunda possível.
O problema seria apenas, em casos de procedimentos com limitações probatórias, que eventualmente seriam compatíveis com o julgamento do pedido principal, mas incompatíveis com a solução da questão prejudicial, a qual dependeria da produção de provas inadmissíveis naquela via. Parece-nos que nesta hipótese não poderia haver coisa julgada sobre questão prejudicial.
6 – Conclusões
Temos motivos sim para ficarmos preocupados com a coisa julgada sobre questão prejudicial. Trata-se de técnica processual complexa e de difícil identificação no caso concreto. No entanto, esta foi a escolha legislativa. E não podemos culpar completamente o legislador, o qual se preocupou em estabelecer limites, exigiu o contraditório e um juízo de certeza, pautado em provas, para que a coisa julgada se estabeleça quanto aos motivos da sentença.
Isto, de fato, deve reduzir surpresas para as partes e cumprir com o objetivo central desta técnica, que é o de gerar economia processual e dar mais efetividade às decisões do juiz, as quais terão ampliados os seus efeitos extraprocessuais.
Resta-nos, agora, apenas a missão de nos preocuparmos em extrair o máximo de efetividade do novo ordenamento, interpretando esta regra em consonância com os motivos que a geraram. Novo Código exige, também, nova mentalidade, ainda que essa nos remeta à doutrina de 200 anos.
*Doutor e mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP. Professor da FDV – Faculdade de Direito de Vitória. Advogado.
Notas:
[1] – Barbosa Moreira, Questões prejudiciais e coisa julgada, 1967, pp. 80-81
[2] – O argumento dessa tese já residia na utilidade. Afastada a imutabilização das questões prejudiciais, para esta doutrina careceria de sentido a figura da coisa julgada. Quando acolhe o pedido, o juiz o faz reconhecendo os elementos constitutivos alegados pelo autor ou mesmo rejeitando as exceções apresentadas pelo réu. “Se nos limitássemos à expressão abstrata do julgamento, sem lhe penetrarmos o sentido, que só o conhecimento do raciocínio do juiz é capaz de aclarar, tornar-se-ia absolutamente impossível a invocação da auctoritatis rei iudicatae em processo ulterior” (Barbosa Moreira, ob. cit, p. 81).
[3] – Barbosa Moreira, ob. cit., pp. 81-82.
[4] – Dizia Dinamarco que o escopo social é o escopo máximo do processo, direcionado a pacificar, eliminar conflitos sociais, substituindo a crise privada por um ato de poder do Estado, seguramente imutável, que concede incertezas institucionalizadas aos indivíduos.
[5] – Com a restrição da coisa julgada ao objeto litigioso do processo (delimitado pelo pedido e causa de pedir), os litigantes têm melhores condições de identificar quais matérias serão imutabilizadas com o julgamento de mérito, e quais não. Assim Barbora Moreira: “Quem pede um pronunciamento sobre a relação condicionada nem sempre tem interesse em ver transpostos os limites em que, de caso pensado, confiou o thema decidendum, em que, por outro lado, se possa contrapor ao da parte qualquer interesse público dotado de força bastante para tornar necessária a produção do efeito que ela quis evitar. A parte pode estar despreparada para enfrentar uma discussão exaustiva da questão subordinante, v.g., por não lhe ter sido possível, ainda, coligir todas as provas que, potencialmente, a favoreceriam e, no entanto, achar-se na continência, por este ou aquele motivo, de ajuizar desde logo a controvérsia subordinada” (Barbosa Moreira, ob. cit., p. 90).
[6] – Do mesmo modo, não entendemos que a existência de motivação é requisito para a coisa julgada sobre questão prejudicial. Se há decisão, se é questão prejudicial e todos os outros requisitos estão presentes, as sentença sem motivação será nula, mas não por isso deixará de produzir coisa julgada material.
[7] – Salvo tratar-se de competência funcional ou pautada do lugar do imóvel (NovoCPC, arts. 62). Embora cuidem de casos de incompetência absoluta, não foram mencionadas no inciso II do § 1º do art. 500, levando à interpretação de que, nestes casos, embora incompetente o juízo prolator da sentença para decidir – principalmente – a questão decidida de forma incidental, não haverá óbice para a produção da coisa julgada.
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Do site Jota Info – artigo de Cláudio Pereira de Souza Neto (conselheiro da OAB Federal e professor da Universidade Federal Fluminense) refuta tese de impedimento da presidenta Dilma:
Há poucos dias veio a público parecer da lavra do jurista Ives Gandra da Silva Martins, em que defende a abertura de processo de impeachment contra a Presidente da República. Com as vênias devidas ao ilustre professor, tenho a tese não só com incorreta, mas como insustentável nos termos em que foi formulada. Porém, além de impugnar os argumentos que constam do rumoroso documento – o que já foi feito com toda a competência por variados especialistas em direito constitucional –, parece-me conveniente situar o tema o impeachment na esfera que lhe é própria: a esfera superior onde o respeito à Constituição prevalece sobre a virulência dos conflitos partidários. É sobretudo este o objetivo deste breve estudo.
I
Em contextos de pluralismo, a unidade social depende da adesão aos valores básicos da democracia constitucional, que se traduz pela expressão “patriotismo constitucional” (Habermas). Nas democracias, além de cultivarem seus valores religiosos e ideológicos particulares – valores diferenciam cada grupo social dos demais –, os cidadãos cultivam também valores políticos básicos comuns, que dão unidade à comunidade política. Sem um grau razoável de “patriotismo constitucional”, o regime democrático não é sustentável no longo prazo, e sucumbe a interesses políticos de ocasião. Se os grupos políticos aderem à democracia constitucional apenas por razões estratégicas ou instrumentais – ou seja, aderem motivados por interesses passageiros, não por convicção – não vacilam em tomar atalhos para o poder quando as oportunidades se apresentam, ainda isso implique violar as bases da democracia constitucional.
No Brasil, estamos engajados em um esforço de mais de um século para consolidar a cultura constitucional democrática, própria de sociedades em que o respeito à Constituição prevalece sobre as paixões facciosas de elites políticas em competição. No século passado, em que se encontra a origem da presente ordem constitucional, os interesses partidários transitórios prevaleceram em diversos momentos, culminando com o golpe militar de 1964, e o regime de força então instituído. Na vigência da Constituição Federal de 1988, a estabilidade constitucional tem prevalecido sobre os interesses dos grupos políticos. A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a efetivamente dar lugar a esse contexto político virtuoso, de pluralismo, liberdade e respeito às regras do jogo democrático. Sob sua vigência, finalmente floresce no Brasil o sempre ansiado patriotismo constitucional.
Essa nota introdutória sobre o patriotismo constitucional é oferecida na forma de uma exortação. É preocupante que interesses facciosos já comecem a se traduzir em estratégias de atuação que estão em total desacordo com os valores básicos da democracia constitucional. A democracia constitucional não se harmoniza com atalhos e desvios. Só comporta o caminho da democracia, da legalidade e do devido processo legal.
II
É vital para a democracia a presença de uma oposição aguerrida, que aponte com contundência os erros e as inconsistências das ações governamentais. A existência de tal oposição no Brasil deve ser festejada não apenas em razão das virtudes das ideias que defende, mas também pela circunstância de produzir maior consistência nas ações governamentais. Ao forçar o Governo a responder a críticas e a prestar contas à cidadania, a oposição provoca o aperfeiçoamento da atuação governamental. A troca de argumentos e contra-argumentos na esfera pública racionaliza e legitima o processo decisório público.
A contundência da atuação oposicionista não pode significar, porém, desrespeito à Constituição e violação das regras democráticas. A história brasileira provê alguns maus exemplos. Às vésperas das eleições de 1950, o político e jornalista Carlos Lacerda, em relação a Getúlio Vargas, dizia: “O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. O mesmo desprezo pela democracia constitucional predominou na conduta de Lacerda durante o governo de Juscelino. Mas só veio a prevalecer no golpe de 1964, desfechado contra o Governo de João Goulart.
A normalidade que temos vivenciado no Brasil pós-1988 demonstra que aprendemos a lição da história. Esse tipo de orientação antidemocrática deixou de fazer parte da vida política brasileira, para dar lugar ao reconhecimento tendencialmente consensual de que a única via legítima para se chegar ao poder no Brasil é a das eleições periódicas. Embora ainda repleto de problemas e imperfeições, do ponto de vista político, o país pode hoje ostentar orgulhosamente a condição de nação democrática. É conquista que precisamos defender com dedicação e patriotismo constitucional.
Por isso, provoca perplexidade a defesa do impeachment da Presidente da República levada a termo pelo ilustre tributarista Ives Gandra, que sustentou a hipótese em parecer encomendado pelo advogado do ex-Presidente Fernando Henrique – este último, como se sabe, um dos principais artífices da democracia constitucional que vivemos hoje no Brasil.
III
Cabe uma nota sobre o jurista e outra sobre a tese por ele sustentada.
O professor Ives Gandra é um dos principais estudiosos do direito tributário brasileiro, tendo publicado incontáveis estudos sobre os tributos no Brasil. É de conhecimento público, porém, que para além de sua atuação como professor e advogado, o renomado jurista é especialmente dedicado à defesa de ideias conservadoras sobre a política, a moral e os costumes. É, por exemplo, um dos mais veementes críticos da política de direitos humanos de todos os governos desde a redemocratização do país. Coerente com a austeridade de suas crenças religiosas, o professor Ives Gandra é, provavelmente, o mais conservador dentre os juristas brasileiros com efetiva expressão pública.
Essa nota biográfica é feita apenas para que o público que teve acesso ao seu parecer conheça a partir de que lugar suas inferências são emitidas. Há muito a hermenêutica já revelou a influência que nossas pré-compreensões exercem sobre a produção do conhecimento. Por mais que busque a imparcialidade na interpretação do direito, as preferências políticas e orientações axiológicas do intérprete sempre exercem importante papel, chegando, as vezes, mesmo a obnubilar evidencias textuais da lei. Com todas as vênias devidas ao eminente professor, foi o que parece ter ocorrido no caso do ruidoso parecer do impeachment.
Deve-se constatar, de início, que se trata de tese exógena às tradições do instituto interpretado. O impeachment é instituto próprio dos regimes presidencialistas, em que o Presidente exerce mandato previamente delimitado. O mandato não pode ser interrompido pela circunstância eventual de o mandatário perder apoio majoritário no Parlamento. Hoje, por exemplo, Obama governa sem maioria em nenhuma das casas legislativas, e ninguém cogitaria de seu impeachment. O instituto não se confunde com o “voto de desconfiança”, próprio do Parlamentarismo, por meio do qual a maioria parlamentar pode provocar a queda do Primeiro Ministro e de seu gabinete. Para legitimar a cassação do mandato do Presidente Lugo, no Paraguai, o professor Ives Gandra procurou, na ocasião, aproximar os dois institutos, e volta a fazê-lo agora: o impeachment, como concebido por ele, seria praticamente um veículo para, no Presidencialismo, afastar mandatários que perderam apoio parlamentar. Uma coisa é desejar que o Brasil adote o parlamentarismo; outra é promover a sua adoção por meio de uma interpretação do texto constitucional que, na verdade, o revoga.
A outra estratégia empregada no estudo é sustentar que os atos de improbidade são “crimes de responsabilidade”, puníveis com impeachment, ainda quando praticados em sua modalidade culposa e se consubstanciem em omissões. A partir dessa afirmação abstrata, sequer cogitada pelos estudiosos que se dedicaram especificamente ao tema, o ilustre tributarista passa a defender que a Presidente teria deixado negligentemente de vigiar a atuação de seus subordinados na Petrobras, tanto agora, no exercício da Presidência, quanto antes, quando ocupava cargo no Conselho de Administração da Companhia. A Presidente teria incorrido em culpa in eligendo e culpa in vigilando. Pelo fato de ter participado do Conselho de Administração da Empresa e de, no exercício da Presidência da República, tê-lo nomeado, a Presidente teria praticado “crime de improbidade”.
Também nesse ponto, data vênia, o Professor Ives Gandra apresenta como platitude uma construção que sequer se insere na esfera do que é polêmico ou discutível. É fora de dúvida que a Presidente da República apenas poderia ser considerada omissa, para efeito de sua responsabilização jurídica, se tivesse concretamente tomado conhecimento de atos ilegais praticados pelos diretores da Petrobras ora acusados e não tivesse tomado nenhuma iniciativa para apurá-los, deixando de promover a devida responsabilização. Essa omissão é que poderia ser caracterizada como crime de responsabilidade, nos termos do art. 9º, 3, da Lei 1079/50: “São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: (…) 3 – não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”. Como fica claro pela simples leitura do texto legal, sem uma omissão concreta, a responsabilização da Presidente da República não é possível. Adotada a tese, o mandato presidencial, bem como os de governadores e prefeitos, perderia totalmente a estabilidade. A interpretação proposta está em frontal contradição com o direito brasileiro, seja no que toca aos princípios básicos que conformam o instituto do impeachment, seja no que concerne à expressão literal das normas de cuja aplicação se cogita.
IV
Reconhecer a evidência de que não estamos, em absoluto, diante da hipótese sequer de abertura de processo de impeachment, não reduz, em nada, a gravidade dos fatos noticiados. São fatos que corroboram a percepção generalizada de que o problema da corrupção é efetivamente grave no Brasil e atinge todos os níveis de governo. O caso da Petrobras revela, mais uma vez, a dimensão sistêmica da corrupção em nosso país. As mesmas empreiteiras envolvidas no caso Petrobras contratam com outras estatais e com entes do governo da União e dos mais diversos estados e municípios. As mesmas empreiteiras financiam campanhas eleitorais beneficiando candidatos dos mais variados partidos, de situação ou de oposição. A operação evidentemente padronizada demonstra que o problema é sistêmico, razão pela qual demanda soluções igualmente sistêmicas. Temos a oportunidade de ir além da fundamental responsabilização dos culpados: devemos reformar as instituições para reduzir os estímulos sistêmicos à prática da corrução no Brasil.
A supressão desses estímulos sistêmicos deve começar pela pronta proibição do financiamento de campanhas eleitorais por empresas. Há projeto de lei no Congresso Nacional que veicula essa proposta. Trata-se do projeto denominado “Reforma Política Democrática e Eleições Limpas”, apresentado pela OAB, pela CNBB e por mais de 100 entidades representativas da sociedade civil. Há também a ADI n. 4650, ainda pendente de julgamento no STF, ajuizada pela OAB para impugnar o financiamento empresarial das campanhas eleitorais. Embora já haja maioria formada na Corte declarando a inconstitucionalidade desse tipo de financiamento, o processo encontra-se suspenso em razão de pedido de vista. A conclusão do julgamento no STF ou a aprovação do projeto de lei será um passo efetivo para a moralização de nossas práticas administrativas. É medida que ampliará significativamente a eficácia produzida pela Constituição na esfera administrativa.
Ser patriota no Brasil contemporâneo é defender a legalidade constitucional e a efetividade da Constituição.
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